No cenário de aumento das desigualdades, serviços filantrópicos de saúde, educação e assistência social se tornam ainda mais importantes
Reportagem publicada na revista Consumidor Moderno, em 1 de outubro de 2020
Por Larissa Sant’anna
Recentemente, as Organizações da Sociedade Civil (OSC) se viram na necessidade de escrever um manifesto sobre o projeto da reforma tributária. Com o título “Taxação da Solidariedade”, o texto questiona o fato de o Estado brasileiro enxergar as atividades caritativas como uma possível fonte arrecadatória. Isso num cenário onde boa parte das políticas públicas são realizadas pelas filantrópicas, uma vez que a máquina estatal não consegue atender às demandas de forma eficaz.
Custódio Pereira, presidente do Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (FONIF) conta que o setor sempre esteve empenhado em atender as suas causas – assistência social, educação e saúde – e o trabalho realizado não foi divulgado. “O que acabou acontecendo é que a sociedade passou a não ter o conhecimento do que é o setor e da importância dele. Por ser desconhecido, o setor é constantemente atacado, tanto no sentido arrecadatório quanto no de mercado, que é muito competitivo e tem muita gente que não tem interesse de que as instituições filantrópicas existam e ‘compitam’ com elas, principalmente no setor da educação”, explica.
Para se posicionar melhor diante da situação e mostrar sua importância, o setor se organizou por meio do FONIF e realizou uma pesquisa auditada e com base em dados da receita federal. O resultado mostrou que as mais de 11 mil entidades que atuam hoje no Brasil geram cerca de 2,3 milhões de empregos. A cada R$ 1 de imunidade tributária, a contrapartida real é de R$ 7,39. Só na área da saúde, setor extremamente pressionado durante a pandemia, as atividades filantrópicas correspondem a 59% das internações de alta complexidade do SUS e somam 260 milhões de procedimentos ambulatórios e hospitalares por anos, são mais de 860 milhões de pessoas atendidas.
“Estamos em todos os lugares e atendemos a sociedade nos setores que ela mais precisa. Sem as filantrópicas, o atendimento social do Brasil deixa de existir. O Estado não tem a capilaridade e nem as condições de atender um território tão grande quanto o do Brasil e o mercado não tem interesse”, afirma Custódio.
Saúde, educação e assistência social
A pandemia do coronavírus aumentou ainda mais a desigualdade social brasileira. Enquanto uma parcela da população pôde ficar sem sair de casa, estocar alimentos e se adaptar ao home office e ao homeschooling, outra precisou continuar saindo para conquistar as refeições diárias e não conseguiu manter os cuidados básicos de higiene.
O Voluntariado Einstein, por exemplo, detectou 50 mil pessoas em situação de risco nas regiões da Vila Andrade e do Campo Limpo, em São Paulo. “Essas famílias não tinham nem escova de dente. Muitas delas tinham uma escova para cinco, seis pessoas”, conta Thelma Sobolh, presidente do Voluntariado Einstein. Diante da situação, foi organizada uma campanha que conseguiu distribuir 50 mil kits de higiene para essas famílias.
Percebendo as grandes necessidades que estavam aparecendo, o Voluntariado também organizou ações que entregaram 24.700 cestas de alimentos para 10.850 famílias e 1.209 kits, com conjunto de moletom, peças íntimas, chinelos, sabonetes e máscaras para os pacientes que foram internados no Hospital de Campanha do Pacaembu.
A educação foi outra grande preocupação do Voluntariado Einstein. “Nós detectamos em Paraisópolis a necessidade de dar um atendimento pedagógico para as crianças que estão fora da escola. A distância, no sentido pedagógico, daqueles que têm acesso à internet para aqueles que não têm aumentou muito nessa pandemia. Por isso estamos desenvolvendo um trabalho para dar assessoria pedagógica, de forma online, para 150 crianças até o final do ano”, conta Thelma.
Josiane de Almeida Souza, moradora de Paraisópolis, segunda maior comunidade de São Paulo, se viu aliviada quando os filhos Welder e Mirela começaram a receber o apoio pedagógico. “Se não fosse as voluntárias, eles não estariam estudando porque eu estudei pouco e muita coisa eu não entendo. Com a Mirela, por exemplo, eu estava colocando ela para copiar o alfabeto todos os dias, a rotina era a mesma e ela já estava enjoada. Agora todo dia tem coisa diferente, a voluntária ajuda ela a fazer as tarefas que a professora manda e ela está aprendendo, está feliz, sempre pergunta quando a voluntária vai ligar”, conta. Com o marido de Josiane desempregado e ela sem poder trabalhar, o sustento da família também está sendo garantido pela filantropia: todo mês eles recebem uma cesta básica.
Assim como o marido de Josiane, muitas pessoas perderam o emprego na pandemia. A taxa de desemprego no Brasil subiu para 13,8% no semestre encerrado em julho, a maior da série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Mensal (PNAD), do IBGE. O trabalho realizado pela CIEE busca capacitar jovens e ajudá-los a encontrar o primeiro emprego neste cenário complicado.
“Infelizmente percebemos uma queda no volume de abertura de vagas. Normalmente, os jovens são os primeiros a serem impactados em crises por terem menos experiência. E quanto mais vulnerável o jovem, menos acesso ele tem a educação de qualidade, a recursos tecnológicos, e isso torna o processo de busca de emprego ainda mais desafiador. Com a plataforma Saber Virtual oferecemos 34 cursos técnicos e comportamentais, gratuitos e com certificado, para oferecer ao jovens capacitação. Além disso, nosso programa de aprendizagem, que era presencial, se tornou online. Estamos atendendo por Facebook e até WhatsApp por perceber que esses canais consomem poucos dados e costumam estar inclusos nos pacotes das operadoras. O trabalho é muito importante para que o jovem se mantenha otimista e use seu tempo em casa da melhor forma possível”, afirma Elaine Bancalá, Gerente Educacional e de Aprendizagem do CIEE.
A estudante de engenharia de produção Chris Ashlyn Santana Gimenez, realizou três cursos pela Saber Virtual e conseguiu uma oportunidade no mercado de trabalho. “Estava em busca de um trabalho desde que me formei no Ensino Médio e, principalmente, quando ingressei na faculdade. Os cursos foram importantíssimos para o meu desenvolvimento na faculdade e porque eu nunca havia estado em um ambiente corporativo e não possuía experiência com entrevistas. Estar no mercado de trabalho agora e ter a oportunidade de atuar mais próximo da minha área vai ajudar na construção da minha carreira”, conta.
Diante de um trabalho tão importante, Custódio conclui: “O Brasil é um dos poucos países do mundo que não incentiva a doação, se você doa, você é tributado. O setor da filantropia, que tem essa representatividade, está pedindo socorro porque está sendo atacado e sujeito a ser taxado”.