Setor responsável por quase 50% das internações do SUS depende de doações para ampliar atendimentos

Emilio Sant’Anna

Mais da metade dos 15 anos de Jerllyson de Oliveira se passaram enquanto ele tentava se curar da leucemia. Por três vezes, a doença parecia vencida. Por três vezes, ela voltou. O câncer ainda faz parte de sua vida.

Em abril, quando teve que ser levado às pressas para o pronto-socorro do Hospital Oncológico Infantil Octávio Lobo, em Belém (PA), poderia ser mais uma intercorrência do câncer. O adolescente, no entanto, foi diagnosticado com Covid-19 e se tornou um dos mais de 2 milhões de brasileiros contaminados oficialmente pelo novo coronavírus.

Foram duas semanas de internação, duas semanas de angústia para Cleide Louzada, 42, a mulher que escolheu, há sete anos, ser sua “mãe de coração” e adotar o menino. “É uma escola de vida [ser a mãe de Jellyson]”, diz.

Nesses 15 dias internado, o que aliviou a tensão da mãe do adolescente foi saber exatamente o tipo de tratamento que ele receberia no Octávio Lobo, hospital do governo do Pará especializado em câncer infantil, gerenciado pela Pró-Saúde, entidade beneficente com atuação em todas as regiões do Brasil. Desde que o hospital foi inaugurado, Jerllyson se trata na instituição.

“Aqui ele tem uma médica que o acompanha, que sabe tudo sobre ele. E, por ser um hospital infantil, ele não precisa passar por situações como ver pacientes adultos passando mal, esperando tratamento”, diz Cleide.

Hospital Oncológico Infantil Octávio Lobo, no Pará

O trabalho especializado desenvolvido pela unidade é apenas um dos exemplos da atuação das instituições e hospitais filantrópicos no Brasil, trabalho que se destaca também no atendimento de pacientes da pandemia do novo coronavírus.
Instituições filantrópicas de saúde são organizações com produção significativa voltada para o Sistema Único de Saúde (SUS) e oferta de mais de 100 mil leitos para a população brasileira.

Esse setor, de acordo com pesquisa do Fonif (Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas) devolve à sociedade R$ 8,26, em média, para cada R$ 1 em imunidade previdenciária. A pesquisa foi realizada em 2018, com dados referentes a 2017 e aponta para a evolução do valor retornado à sociedade. Em 2016, o primeiro estudo do tipo apontava que as instituições filantrópicas de saúde davam um retorno médio de R$ 7,35 para cada R$ 1 em imunidade previdenciária.

De acordo com dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, o país tinha, em 2017, 2.267 estabelecimentos filantrópicos nessa área. Isso representava 0,6% da quantidade total de estabelecimentos de saúde no Brasil.
Para efeito de comparação, essas unidades de saúde foram responsáveis naquele ano por nada menos que 4.485.057 procedimentos hospitalares. Isso corresponde a 39% da quantidade total e praticamente a metade (47%) do valor total dos procedimentos hospitalares do SUS (Sistema Único de Saúde) em 2017. Naquele mesmo ano, foram mais de 250 milhões de procedimentos ambulatoriais realizados pelas instituições filantrópicas. Ainda de acordo com dados do Ministério da Saúde, 59% de todas as internações de alta complexidade no SUS são realizadas por hospitais filantrópicos.

Isso tudo ocorre sem que, muitas vezes, o próprio paciente saiba que está sendo tratado por uma instituição filantrópica. Esse foi o caso do vendedor autônomo Marcelo dos Santos, 38, internado durante 29 dias após ser diagnosticado com Covid-19.
Santos passou quase um mês no Hospital Regional Público da Transamazônica (HRPT), unidade pertencente ao governo do Pará e gerenciado pela Pró-Saúde, em Altamira. “Não tenho o que falar [mal] de lá. Fui super bem atendido, das enfermeiras ao médico”, diz.

Durante os dias de internação, apesar do medo de ser intubado, e de ver outros pacientes morrerem, ele afirma que confiava no tratamento que estava recebendo. “Cheguei a ter 85% do pulmão comprometido, mas aí comecei a reagir. Foi um médico que ‘lidou comigo’ e aí passei a melhorar”, afirma.

No dia em que recebeu alta, médicos, familiares e enfermeiros fizeram uma festa de despedida para o vendedor. Quase um mês após deixar o hospital, Santos continuava sem saber que a instituição era administrada por uma entidade filantrópica. “Não sabia. Isso é muito bom. Devolve em trabalho para a sociedade”, afirma. A percepção de Santos sobre a contrapartida à imunidade previdenciária estabelecida pela Constituição de 1988, ocorre mesmo com a baixa remuneração dos procedimentos pagos pelo governo.

“É interessante notar a defasagem da Tabela SUS [lista de valores pagos pelo governo por procedimento]. O que o SUS paga está seis vezes abaixo do valor de mercado”, diz o pesquisador Pedro Mello, autor do estudo do Fonif.

 

O livro de Jerllyson

Uma das novidades que a pesquisa apresenta em relação ao primeiro levantamento é o cálculo de ativos intangíveis dessas instituições. Por serem de difícil mensuração, esses valores costumam ficar de fora da composição do valor líquido de uma empresa ou instituição. No entanto, grande parte do valor real de uma entidade vem desses ativos, como por exemplo, a inovação, a qualidade de seus funcionários e sua sustentabilidade.

Por meio de uma história em quadrinhos sobre a sua vida, Jerllyson de Oliveira, de apenas 15 anos, tenta conscientizar sobre o tratamento do câncer infantil

No caso de Jerllyson, um desses ativos foi diretamente responsável para que ele assumisse o protagonismo de sua história de luta contra o câncer. Um projeto batizado de Fada Madrinha, do Hospital Oncológico Infantil Octávio Lobo, permitiu que o garoto realizasse um sonho. À lápis, Jerllyson resolveu um dia escrever sua história ao longo dos anos de tratamento contra a leucemia. “Oi, meu nome é Jerllyson, tenho 15 anos e tenho câncer”, diz a primeira frase de seu livro “Minha História”, escrito quase que de uma vez só.

“Eu estava vendo TV e pensei: ‘Vou tentar fazer um livro’. Fui para a mesa, peguei o lápis e comecei a escrever”, afirma o menino.

Quando Viviane Lesses, gerente de qualidade do hospital, soube da iniciativa correu para buscar a ajuda de um ilustrador voluntário e uma forma de transformar em livro o que Jerllyson havia colocado, à mão, no caderno. Resultado: no começo do ano, o adolescente dividiu seu tempo entre a escola, o tratamento e três lançamentos de seu livro, com direito a sessões de autógrafo – período em que, diz sua mãe, ele apresentou sensível melhora em sua condição de saúde e qualidade de vida.

“Apesar de toda a dor dele, ele não perdeu a sensibilidade de ajudar o próximo e contou sua história como forma de ajudar outras crianças que passam por isso”, afirma a mãe.

Iniciativas como a do hospital parecem se reverter, de fato, em melhores condições de saúde e de conforto psicológico para seus pacientes, mas nada disso seria possível sem que o setor de saúde filantrópica tivesse o mínimo de previsibilidade e segurança para fazer seu trabalho. Mesmo com os inegáveis retornos, tangíveis e intangíveis, à sociedade, ainda há problemas no horizonte dessas instituições a serem resolvidos. O déficit de financiamento é o maior deles.

“A tabela SUS não é reajustada há 17 anos. Os recursos repassados pelo governo para pagar procedimentos hospitalares de média e alta complexidade, além da atenção básica de saúde são insuficientes para cobrir os custos”, diz o presidente do CMB (Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos) Mirocles Véras.

Segundo ele, o atual modelo de financiamento culminou com o déficit médio entre o custo na assistência SUS e a receita proveniente desses atendimentos, superior a 65%, o que já determinou o fechamento de hospitais. 

“Soma-se a isso a crise econômica dos últimos anos, que se agrava agora com a pandemia da Covid-19, e que também atingiu o setor filantrópico, uma vez que, com tantas pessoas desempregadas e sem planos de saúde privados, a demanda sobe exponencialmente”, afirma Véras.
O presidente da CMB diz que alguns projetos de lei aprovados recentemente deram fôlego ao setor, como o PL 1006/2020, do senador José Serra (PSDB), que destina R$ 2 bilhões às Santas Casas e hospitais filantrópicos. Esse recurso, no entanto, que pode representar a sobrevivência de muitas das Santas Casas, pode também não ser suficiente para o setor ante o tamanho de suas dívidas.

Outra medida destacada por Véras foi anunciada em 27 de março: a diminuição dos juros de uma linha de crédito especial da Caixa Econômica Federal, com o objetivo de injetar até R$ 5 bilhões no sistema para manter os hospitais operando plenamente durante a emergência sanitária causada pela pandemia.

Essa linha de crédito, porém, diz o presidente da CMB, não atende o setor por ter juros mais altos dos que os cobrados, por exemplo, para a agricultura e a indústria.

“Vamos precisar rediscutir o sistema, rever os critérios de remuneração dos leitos SUS de UTI e garantir a evolução da filantropia que hoje, com todas as dificuldades, respondem por mais de 50% dos atendimentos SUS do Brasil.

Santa Casa de SP amplia leitos de UTI

Uma ideia do tamanho do problema que isso representa para o setor e para o país pode ser obtida quando se observa o fato que cerca de 900 municípios brasileiros têm apenas uma Santa Casa como único hospital disponível. O trabalho desenvolvido durante a pandemia do novo coronavírus por uma das Santas Casas mais conhecidas do país, a Santa Casa de São Paulo, também é um exemplo da importância do setor para a sociedade.

Santa Casa de SP

O hospital da região central da cidade conseguiu ampliar em 120% o número de leitos de UTI disponíveis. O investimento para isso, no entanto, veio de doações do setor privado. No total, R$13.489.236,00 foram arrecadados (até o mês de julho), além das doações de equipamentos de proteção individual, medicamentos, compra e manutenção de equipamentos e reformas estruturais, vindas de empresas e pessoas físicas.

De acordo com Antonio Penteado Mendonça, provedor da Santa Casa de São Paulo, com a chegada da pandemia do novo coronavírus, o hospital partiu em duas direções. A primeira foi fazer contato com as secretarias de saúde do Estado e da capital para acertar os detalhes de atuação e custeio.

A segunda foi o desenvolvimento de um amplo projeto de aproximação da sociedade civil para criar parcerias e conseguir os recursos necessários para as obras e serviços indispensáveis para o atendimento da população.

“Todos os leitos de UTI da Santa Casa reservados aos pacientes da covid19 foram destinados ao SUS. 25 leitos de UTI do Hospital Santa Isabel foram destinados a convênios e outros 20 ao SUS”, diz Mendonça.

Para Rogério Pecchini, diretor de Operações em Saúde da Santa Casa, o grande desafio da pandemia foi a necessidade de adaptação rápida do hospital. A taxa de ocupação da UTI chegou a atingir 92% antes de cair para 65% no início de julho.
“A Santa Casa de São Paulo tem atendido pacientes graves, que procuram o hospital após outras tentativas de acesso a serviço de saúde, que chegam por demanda espontânea ou pela rede referenciada de saúde. Um perfil desses pacientes é a alta prevalência de comorbidades”, afirma Pecchini .

Mesmo com o cancelamento de cirurgias eletivas e realização de exames, a saúde financeira do hospital deve chegar ao final da pandemia melhor do que antes dela. Isso, no entanto, não deve ser uma realidade sustentável. “Com a entrada de recursos da iniciativa privada e recursos extras do governo, a saúde financeira não só não foi afetada, como teve algum alívio. A situação deve voltar a se deteriorar após a pandemia, quando o déficit recorrente da remuneração do SUS deve voltar a impactar as contas”, diz o provedor.

“O modelo de financiamento não foi modificado e está longe de ser eficiente. O déficit mensal da conta SUS chega a 40% dos custos reais dos procedimentos realizados”, completa.

A Santa Casa de São Paulo terá que se adaptar quando a pandemia passar. Jerllyson também tem planos para quando esse dia finalmente chegar. “Quero escrever o que passei agora e colocar no livro”, diz. “Oi, meu nome é Jerllyson, tenho 15 anos, tive câncer e Covid-19. Hoje, estou curado”, poderia ser um novo começo para sua história.

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